Onda de feminicídios alarma mulheres no Peru

Só nos primeiros meses de 2018, 13 peruanas foram mortas por companheiros  e 44 sofreram tentativas de assassinato. A violência dos ataques revoltou grupos feministas, que intensificaram as campanhas pelo respeito à mulher.

Beatriz Tanabe, Layane Bittencourt, Louise Diório, Olívia Moderno e Vitória Rezende

Quando tinha oito anos, Eva Machado foi importunada por um homem pela primeira vez. Ela estava com sua mãe em um mercado de rua quando, inesperadamente, sentiu a mão de um homem em seu corpo. Aquele momento a marcou para sempre. “Eu ainda consigo lembrar a surpresa e a sensação de ser abusada em frente a tantas pessoas”, conta ela. “Não há desculpas para o abuso, isso não deveria acontecer com ninguém.”

Hoje, aos 34 anos, Eva milita na frente feminista Paro Internacional de Mujeres – Perú, idealizado pelo coletivo mundial de defesa dos direitos da mulher The International Women’s Strike (IWS). O ativismo, segundo ela, é uma forma de denunciar e combater a violência. “Nós vivemos em um país estuprador, em uma sociedade abusiva e em um Estado sem coração”, desabafa.

Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), no ano de 2016, cerca de 2 mil casos de feminicídio foram registrado em 17 países da América Latina e Caribe.  No Peru, nesse mesmo ano, ocorreram 124 assassinatos e 258 atentados contra a vida de mulheres. Em 2017, o país ocupou o 8º lugar no índice de feminicídio entre as nações da América Latina. Honduras figura em primeiro lugar. O Brasil, assim como Colômbia e México, não foi incluído na pesquisa por falta de dados oficiais, mesmo ocupando a posição de quinto país mais violento do mundo, segundo informações da Organização das Nações Unidas (ONU).

Um dos casos que mais chamou a atenção do país para o problema  foi o ataque, no ano passado, contra Micaela de Osma, 23 anos, arrastada pela rua por seu namorado, em Lima, após uma crise de ciúme.  Os vizinhos filmaram as cenas e divulgaram nas redes sociais, causando comoção e fortalecendo o debate acerca da crescente violência contra a mulher.

As maiores causas do feminicídio e violência sexual, segundo avaliação da ONU, são as falhas de segurança social, a cultura machista e a impunidade.  As mulheres, no entanto, decidiram reagir de forma organizada. Vários movimentos pelo fim da violência de gênero surgiram nos últimos anos, como o Ni Una Menos, criado em 2017 com o lema “mexeu com uma, mexeu com todas”.

A questão também ganhou visibilidade no concurso Miss Peru 2017.  “Minhas medidas são: 2202 casos de feminicídio reportados nos últimos nove anos em meu país”, denunciou a miss Camila Canicoba Llaro, de Lima, em uma iniciativa repetida por todas as candidatas no momento da apresentação. “Senti que demos um grande passo para acabar com as injustiças. O mundo inteiro denunciou a realidade do Peru”, comentou Camila em entrevista a “Olhares do Mundo”.  Segundo a Miss, a imprensa noticia alguns casos de feminicídio, porém não se mostra interessada em questionar e a causar pressão por mudanças.

Só nos primeiros dois meses de 2018, 13 peruanas foram mortas por companheiros  e 44 sofreram tentativas de assassinato.  A violência dos ataques tem alarmado o país. No início do ano, uma garota de 11 anos estava voltando da aula de artesanato quando foi atropelada por um homem em uma bicicleta. Ele a convenceu de que poderia levá-la para casa. O homem sequestrou a garota, estuprou, matou, tirou fotos de seu corpo nu, ateou fogo e depois jogou no lixo. O corpo foi encontrado por um trabalhador, na manhã seguinte ao crime, em uma lixeira. “É isso que somos para a misoginia: lixo. Não se importam com nossas dores”, protesta Eva.

O Congresso peruano aprovou uma nova lei que inclui e classifica o feminicídio como crime, com pena de até 25 anos de prisão; define-se o feminicídio como o assassinato da mulher por alguém ligado sentimentalmente a ela. Antes, a prisão por esse crime era de seis anos, com a possibilidade de liberdade após dois anos, por meio de benefícios penitenciários e boa conduta.

A professora da Universidade de Sevilla, na Espanha, Katjia Torres Calzada, de 46 anos, diz, no entanto, que para acabar com tantos casos de violência contra a mulher é necessário mais do que boas leis e boa vontade. “É crucial um desejo político real e compromissado para conscientizar as gerações mais jovens”, afirma. Segundo a especialista em feminicídio, a desigualdade de gênero no Peru ocorre em diversas áreas, como saúde, educação, trabalho e participação política. Para ela, a solução está na educação. “Uma medida educativa irá gerar frutos a longo prazo, não acabará com o problema imediatamente, mas é uma semente que será muito bem lançada”, diz.

Para María José del Pino Espejo, especialista da Universidade Pablo de Olavide (UPO), de Sevilla, que estuda o problema no Peru, a maior necessidade é criar um corpo policial especializado em violência de gênero, acessível às vítimas. Ela também defende mais  apoio ao Ministério da Mulher e Populações Vulneráveis para consolidar uma rede de abrigos em todo o país. A vítima precisa de um lugar para ir, geralmente com seus filhos e filhas. “Na selva peruana há apenas um abrigo em Tingo María sem qualquer tipo de apoio financeiro e com muitas necessidades de todos os tipos”, lamenta María José.

As mulheres ouvidas por nossa reportagem não acreditam, no entanto, em mudanças a curto prazo. O Peru passa por uma grave crise política desde a renúncia do presidente Pedro Pablo Kuczynski, em março deste ano, em meio a um grande escândalo de corrupção. O temor das feministas é o possível crescimento do fujimorismo, movimento de extrema direita, conservador e autoritário. Fujimori comandou o Peru por três mandatos, mas perdeu força política após ser preso em 2005 por crimes contra a humanidade. Ele foi condenado por envolvimento em sequestros, torturas, mortes e censuras. Atualmente, o movimento é liderado por sua filha mais velha, Keiko Fujimori, que perdeu a final da eleição presidencial de 2016 para Kuczynski por apenas 0,12% de votos. “O fujimorismo tem força há vinte anos e representa a maioria do Congresso.  As pautas femininas não são relevantes para esses governantes”, diz Eva.

Foto: Paro Internacional de Mujeres-Peru.

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