Australianos decidem em referendo maior participação de aborígenes no parlamento

Eleitores vão às urnas no final do ano para aprovar um órgão consultivo aborígene sobre questões que afetem os nativos. A medida é apresentada como reparação de injustiças, mas muitos indígenas temem que ela seja apenas um paliativo para a violência racial sistemática

Por Camila Pacheco, Gabriel Plácido, Gabriella Franco e Isabella Valentim

Bogaine Spearim, ativista aborígene australiano de 35 anos, relembra com dor as perseguições sofridas por seus pais e parentes ao longo das últimas décadas. “Os aborígenes sabiam que se estivessem fora de casa ao anoitecer poderiam ser mortos à queima roupa”, conta. Não havia toque de recolher, mas robes e chapéus brancos podiam ser vistos entre arbustos, cegamente atirando em direção à missão religiosa em que seu pai vivia, no norte do país. 

“Já aconteceu de meu pai ser perseguido pelos membros do KKK (Ku Klux Klan), com as roupas brancas e tudo, pela mata, correndo para casa” relata Spearim. “No domingo as crianças não podiam brincar fora de casa porque do outro lado do rio, o KKK atirava”. Nos anos 1960 muitas reservas indígenas, chamadas de missões, eram controladas pela Igreja. Além de oferecer abrigo, as missões tinham como objetivo apagar traços culturais, desconectando os nativos das tradições e características aborígenes. De 1910 a 1970, crianças e jovens aborígenes chegaram a ser separadas de seus pais e redirecionadas a instituições ou famílias adotivas brancas para assimilação. Apenas em 1948, os aborígenes passaram a ser considerados cidadãos da Austrália e só em 1962 conquistaram o direito ao voto e à participação nas eleições. 

A política de aculturamento deixou marcas profundas na sociedade australiana. Mas os movimentos sociais pressionaram por inclusão e reparação de injustiças históricas.  Em 2008, o então primeiro-ministro Kevin Rudd apresentou um pedido de desculpas formal do Estado aos aborígenes australianos cujas vidas foram transformadas pelos episódios de assimilação cultural de crianças, chamadas de Gerações Roubadas. Isso, no entanto, não reparou as desigualdades. A Austrália é hoje um dos países mais ricos do mundo, mas a situação de comunidades aborígenes ainda é a mesma, principalmente no estado Território do Norte, onde grande parte da população é aborígene ou descendente de aborígenes. Cerca de 45% das famílias indígenas da região se encontram abaixo da linha de pobreza, mesmo com intervenções políticas para reduzir desigualdades. 

Para enfrentar este problema histórico, o governo atual defende a criação de um órgão aborígene de consulta dentro do Parlamento. A medida, prevista em uma emenda constitucional, será submetida a votação em um referendo entre outubro e dezembro deste ano. O órgão, chamado “The Voice”, seria consultado na tomada de decisões que envolvessem pautas indígenas, representando interesses e necessidades sociais, espirituais e econômicas desse segmento. Os princípios para a elaboração da emenda foram determinados por um grupo de representantes aborígenes.  

Para que a alteração seja aprovada, a emenda deve receber maioria de votos “sim” na maior parte dos estados australianos. Segundo pesquisas realizadas pelo jornal britânico “The Guardian”, a adesão dos australianos à proposta se manteve entre 65% e 63% de agosto do ano passado a fevereiro deste ano. Em março, porém, mês em que o governo anunciou a proposta oficial da emenda, essa taxa caiu para 59%. 

Os primeiros esboços do “The Voice” ganharam visibilidade no ano de 2017, após a leitura de uma petição denominada “The Uluru Statement from the Heart” (Declaração do Coração de Uluru, em português), durante uma convenção na cidade de Uluru, no norte do país. A declaração reivindicava o estabelecimento de um órgão representativo que reconhecesse a soberania indígena do território australiano e reparasse as injustiças históricas causadas pela colonização. Além disso, mencionava a importância de uma comissão que supervisionasse a transparência dos acordos feitos entre o governo e os povos das Primeiras Nações, como são chamados. 

O então governo nacional-liberalista rejeitou a proposta. O governo subsequente, do Partido Liberal, também a descartou, alegando que não apoiaria uma “terceira câmara” no Parlamento. O atual primeiro-ministro da Austrália, Anthony Albanese, do Partido Trabalhista Australiano, é favorável ao órgão. De acordo com ele, a emenda seria um ato histórico de reparação para “fortalecer o discernimento do Parlamento, e não anular sua autoridade”.

A Austrália foi um país de colonização tardia. Em comparação com o Brasil, por exemplo, a história de exploração dos nativos na Austrália é relativamente recente, iniciada em 1788 com a chegada dos ingleses no continente. O professor Paul Patton, especializado em filosofia política, explica, em entrevista a “Olhares do Mundo”,  que, a partir deste momento, foi difundida a visão de que os indígenas eram os povos de mais baixo nível de civilização da sociedade, menos que humanos, e que portanto não poderiam ser representados por qualquer lei ou governo. Não precisariam de direitos. A hostilidade, estabelecida desde o primeiro contato, com as chamadas Frontier Wars e o drástico declínio populacional dos indígenas, se alastrou pelas décadas e se manteve viva. 

Precedendo o pedido de desculpas de Kevin Rudd, por exemplo, antes de sua saída do cargo, o então primeiro-ministro, John Howard, removeu a Lei de Discriminação Racial da constituição e adicionou várias outras medidas que negligenciavam o grupo de maneira velada. Neste mesmo período, enviou militares para o Território do Norte para colocar as comunidades aborígenes em quarentena e obrigou certas comunidades a adotar costumes eurocêntricos. Então, Kevin Rudd pediu desculpas, enquanto tudo aquilo ainda acontecia. Oficialmente, a intervenção durou até 2012, mas ainda estava ativa em 2022.

As crianças da intervenção que nasceram e cresceram sob este regime autoritário tinham muito pouco, porque coisas essenciais e positivas foram cortadas da comunidade para que o programa e as políticas da Intervenção fossem bem sucedidas. “E uma vez que os jovens conseguem se livrar disso, não há nada a seu favor. Daí que surgem anomalias sociais, tentativas de sobreviver a um sistema que naturalmente rejeita a sua existência e participação”, explica Spearim. 

A Austrália difere ainda de outros países por nunca ter assinado nenhum tratado de reparação com os povos indígenas. Até mesmo os Neozelandeses, seus vizinhos, assinaram o Tratado de Waitangi em 1840, entre a Coroa Britânica e os indígenas Maori. 

Alguns marcos na história tiveram resultados mais notáveis. A Declaração dos Direitos Indígenas passada pela ONU em 2007, por exemplo, formulou fortes propostas envolvendo o direito indígena não apenas a terras ou águas, mas à autodeterminação, à participação nos governos e em decisões a respeito da extração mineral em suas regiões.

O Professor Patton afirma, entretanto, que esse tipo de documento não tem força legal até que seja traduzido em leis e preocupações de um governo. “Hoje, os povos aborígenes e nativos das Ilhas do Estreito de Torres compõem 2% da população australiana, não têm força eleitoral significativa. A autodeterminação precisa ser acompanhada do desenvolvimento de sustentabilidade econômica para as comunidades e oportunidades mais amplas para as pessoas indígenas na economia.”

Ainda segundo Patton, o “The Voice”, baseado em anos de pesquisas, terá mais força moral e política, pressionando o governo a responder a injustiças históricas e dar ouvido a vozes aborígenes. 

A Constituição da Austrália, estabelecida em 1901, ainda trata assuntos aborígenes como preocupações do Estado e não considera seus direitos de autodeterminação. Apesar de algumas cláusulas racistas do documento original já terem sido removidas por meio de outros referendos, apoiadores acreditam que a criação de um órgão por vias constitucionais daria aos indígenas um papel mais ativo na luta pela igualdade.

Embora as políticas tenham como objetivo a participação de aborígenes na tomada de decisões governamentais, o movimento divide opiniões dentro e fora da comunidade. A “no campaign” (campanha do não), que vai contra a alteração constitucional, assume diferentes linhas de pensamento. 

Os principais representantes formais da campanha são os movimentos “Recognise a Better Way” e “Fair Australia”. O primeiro defende que uma solução melhor seria baseada em outros fundamentos, como o reconhecimento da ocupação indígena por meio de um preâmbulo na Constituição, uma declaração introdutória cujo conteúdo reconheceria a ocupação indígena original da terra. Segundo eles, os indígenas não precisam de mais vozes, mas de mais meios de integrar a sociedade como um todo. O segundo integra um movimento conservador e conta com o apoio da senadora aborigene Jacinta Nampijinpa Price, do Country Liberal Party. Esse grupo se opõe à mudança na Constituição por aquilo que ela representaria para a identidade australiana, e acredita que o projeto “radical” criaria uma divisão entre aborígenes e não-aborígenes.

O outro lado dessa oposição é visto como mais “progressivo” e é composto por membros da comunidade indígena. Estes são adeptos à ideia de que o que o país precisa é a assinatura de tratados. “Merecemos mais que uma voz impotente”, afirmou a senadora Lidia Thorpe, representante da campanha, durante debate. “Tudo que nos foi oferecido nos últimos 200 anos não tem poder algum. E não queremos nada menos que justiça.” 

Parte da comunidade aborígene não reconhece a eficácia da medida, que é vista apenas como um ato simbólico, mas sem intenções de mudança. A preocupação é de que se a proposta for aprovada, o Estado veja a situação como resolvida e que ela passe a ser ainda mais desconsiderada, afastando cada vez mais a possibilidade de um tratado de reparação de injustiça. O receio também vem do fato de que muitas das empresas que apoiam e financiam a campanha são mineradoras que atualmente continuam destruindo terras culturais indígenas. Além disso, existe uma narrativa de que os aborígenes são como folgados desempregados que recebem coisas de graça do governo, causando grande rejeição fora do círculo minoritário. 

Foto: Joan Mouchet (Unsplash)

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