Vítimas de estupro, mulheres seguem temendo a violência de grupos armados no Tigré

Mesmo com acordo de paz, as disputas étnicas e políticas permanecem intensas no norte da Etiópia; cerca de 120 mil mulheres foram vítimas de violência sexual

Por Milena Ogeia, Katharina Brito e Adriel Gadelha. 

O conflito no Tigré, estado no norte etíope, deixou mais de 500 mil mortes em dois anos em combates entre forças do governo federal, tropas do governo da Eritreia e militantes da Força Popular de Libertação do Tigré (TPLF).  Segundo agências humanitárias, 120 mil mulheres foram vítimas de estupro por soldados de todos os lados. Um acordo de paz foi firmado em novembro de 2022, mas a tensão segue alta na região. 

“As tropas eritreias e a milícia étnica Amhara permanecem em partes de Tigré. Eles continuam abusando dos direitos humanos, inclusive visando mulheres”, afirma o jornalista Martin Plaut, autor do livro “Understanding Ethiopia ‘s Tigray War” (entendendo a guerra do Tigré etíope), lançado em 2023. A historiadora Charlotte Touati, da Universidade suíça de Lausanne, especialista em Chifre da África, confirma: “Isso é uma catástrofe para as vítimas, algumas das quais não conseguem mais ver um uniforme sem serem aterrorizadas.”

Charlotte fundou a Associação Cawl Girls, que dá apoio às vítimas de violência sexual no Tigré, promovendo a inserção e reintegração econômica e social de mulheres em grandes dificuldades. A historiadora diz que o estupro como arma de guerra continua sendo uma realidade. No caso do Tigré, o estupro foi utilizado para humilhar as mulheres da região, que conquistaram autonomia nas últimas décadas. 

“Quando a TPLF entrou em Adis Abeba em 1991 [na revolta que derrubou a junta militar socialista no poder desde 1974], as mulheres representavam 30% da força de trabalho dos tigrés. Ainda hoje, muitas delas continuam lutando. Alguns anos antes da guerra, e com uma aceleração em 2019, a relação entre homens e mulheres mudou muito no Tigré sob o impulso de grupos feministas. O discurso veio do movimento #MeToo e ganhou destaque muito mais rápido do que em outras partes da Etiópia. É também por isso que o estupro foi usado como arma de guerra, para sinalizar às mulheres tigrés que elas não deveriam se emancipar demais”, explica Charlotte. 

Algumas vítimas resgatadas contaram à organização de defesa dos direitos humanos Anistia Internacional que eram violentadas em massa enquanto mantidas em cativeiro, onde ficavam durante semanas. Outras disseram que foram violentadas na frente de suas famílias e sofreram práticas brutais e degradantes. Em um episódio relatado à Anistia,  30 mulheres foram violentadas coletivamente. Os agressores faziam fila para estuprá-las e as fizeram passar fome.

Em maio de 2023, 28 soldados foram condenados por estupro, mas o governo etíope ainda não investigou todas as denúncias. De acordo com as organizacoes internacionais, a maioria das vítimas se esconde, com medo de ser perseguida e caçada por denunciar os casos. Já as vítimas acolhidas, sempre acompanhadas de seus filhos, recebem cuidados básicos em organizações e centros especializados, dedicados às mulheres que sofreram violência.  

A guerra do Tigré, teve início em 3 de novembro de 2020 como resultado de uma tensão política crescente entre o governo federal da Etiópia e os líderes da Frente Popular de Libertacao do Tigré (TPLF), da etnia tigré.  A frente participou do levante contra a ditadura socialista e esteve no governo federal desde o início dos anos 1990. Mas passou a ser excluída do poder quando o antigo aliado Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro da Etiópia, assumiu o governo. Em 2020, a TPLF desafiou as ordens de Abiy Ahmed ao realizar eleições regionais durante a pandemia, o que havia sido vetado pelo primeiro-ministro. Na sequência, as forças de segurança do governo federal etíope lançaram uma ofensiva militar contra as forças do TPLF, alegando que eles haviam atacado uma base militar federal na região do Tigré.

O conflito se intensificou com atos de violência, massacres e deslocamentos em massa de civis, resultando em uma crise humanitária. O geógrafo Jan Nyssen, professor da Universidade de Ghen, na Bélgica, e especialista na região, diz que os tigrés mostraram uma grande resistência durante a guerra, mas ainda enfrentam enormes dificuldades: “A população está muito magra e diminui, especialmente as crianças, que vivem há três anos em condições de fome, sem ir à escola. Tigré está devastado, os salários não são pagos há 20 meses e não há um incentivo do governo em normalizar a situação”, lamentou.

Durante toda guerra, a censura no país também se tornou uma realidade, impedindo civis de se comunicarem e pedirem ajuda internacional, como explica o jornalista Martin Plaut: “Tanto a Etiópia quanto a Eritreia cortaram quase todas as comunicações com o Tigré e proibiram os jornalistas de viajar para a área – mesmo acompanhando as forças armadas etíopes. A maioria das informações vazava por meio de familiares, muitos dos quais traziam histórias de terror”. 

A médica brasileira Iana Olimpia passou três meses na região de Tigré servindo como médica na linha de frente dos Médicos Sem Fronteiras. Ela conta que a guerra trouxe graves consequências para todos, mas em especial, à população local, que sofreu um cerco por parte das forças federais.  “Eles estavam isolados do mundo. Todos sofriam, mas o grupo que mais sofria era o grupo étnico tigrés. Não só pela destruição e violência na região, mas também pela privação de serviços essenciais.”

Em seu diário, Iana registrou momentos em que os médicos foram impedidos  de levar ajuda humanitária ao Tigré. “As autoridades de imigração suspenderam por um tempo a emissão de vistos humanitários, na tentativa de impedir que chegasse ajuda naquela região”, relata Em outro episódio, ela registra a limitação ao qual o trabalho era submetido: “Nossa maior dificuldade é em relação à movimentação. Nosso trabalho é feito no campo, perto das pessoas mais vulneráveis e necessitadas. Quando o contexto de segurança não permite que viajemos para os centros de saúde, nosso trabalho fica comprometido”. 

Charlotte Touati, da Universidade suíça de Lausanne, não vê como a Etiópia possa se reconstruir sem um processo de reconciliação que tenha por base um franco debate sobre o que ocorreu no Tigré. “No momento, estamos vendo um retorno à vida de sempre, inclusive por parte dos atores internacionais. Como você espera que os tigrés esqueçam 800 mil mortos e 120 mil mulheres estupradas, a destruição da economia, dos sistema de saúde e educação no estado?”, indaga a historiadora. “Para os jovens, a falta de justiça, a ameaça alimentar e o ressentimento podem levar a uma situação de violência por vários anos. Justiça para as vítimas e mesmo palavra de conforto para os traumas são necessários.”

Foto: Artush iStock (coyleft)

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