Faixa de Gaza: o maior cárcere a céu aberto do mundo

Palestinos tentam sobreviver em meio à pobreza, infraestrutura precária, falta de saneamento básico e escassez de água e alimentos

Bianca Santos, Luana Dorigon e Taisa Donato

Faixa de Gaza, palco de conflitos entre palestinos e o Estado de Israel, possui território de 360 km² para abrigar cerca de dois milhões de habitantes. A área tem 41 km de extensão e uma largura que varia entre 6km e 12km. Segundo dados da Agência de Estatísticas da Palestina, o território é considerado o lugar com maior índice de desemprego do mundo, chegando a 60% em 2017. Estima-se que 53% da população vive em extrema pobreza. “A maioria dos jovens de Gaza atualmente tenta encontrar maneiras de sair  e encontrar empregos em outros países, como na Turquia ou qualquer nação europeia”, salienta o palestino Mohammad Arafat, 26, autor do livro “Still Living There” (tradução livre para Ainda Vivendo Lá) em entrevista por e-mail a Olhares do Mundo.

“Muitos jovens procuram outras alternativas, como trabalhar online, com traduções ou até mesmo em organizações estrangeiras com fotojornalismo e edição de vídeo. Outros vão para as fronteiras de Gaza, onde há espaço para vender cigarros, brinquedos ou sorvete, e isso, é claro, é um negócio muito perigoso já que dezenas deles foram mortos ou feridos devido a área perigosa para qual eles vão”, comenta Arafat, que vive em Gaza.

Hasan Zarif, 45, dono do restaurante árabe Al Janiah, é filho de refugiados palestinos da Cisjordânia, que chegaram ao Brasil em 1967. O nome do restaurante é o mesmo do vilarejo palestino em que morava sua família. Zarif tem dupla cidadania e acompanha de perto tudo o que acontece na região. “Há alguns anos [2014], mataram quatro crianças que brincavam de bola próximo ao mar de Gaza, pois é um lugar proibido, justificado como ‘questões de segurança para Israel’”, conta. “Entre a Cisjordânia e Gaza, a única coisa que nos separa é a fronteira territorial. No final, somos todos palestinos.”

“Minha mãe morou no Brasil por 30 anos e nunca aprendeu a língua portuguesa, pois ela sempre acreditou que no ano seguinte poderia voltar à Palestina, mas isso nunca aconteceu. A Palestina não voltou. Nem ela. Minha mãe costurou um vestido entre 1961 e 1962, trouxe-o para o Brasil, mas nunca usou. Ela esperava pelo dia que voltaria à Palestina para usá-lo. Ela morreu sem chegar esse dia”, lamenta Hasan.

Desde a criação do Estado Judaico, Israel, em 1948, os palestinos buscam reconhecimento diplomático para seu estado e seus territórios ao longo da Faixa de Gaza, além da Jerusalém Oriental, que é parcialmente ocupada por Israel. O governo israelense, ao lado de alguns outros países, se recusa a reconhecer a Palestina como uma entidade independente política e diplomaticamente, apesar das objeções da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU tentou apaziguar a disputa em 1947, quando a Palestina foi partilhada entre árabes e judeus. Mas os países árabes não aceitaram, lançando uma ofensiva contra  Israel e ocupando as áreas designadas aos palestinos. Em 1967, Israel atacou os países árabes vizinhos e integrou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza ao seu território.

“A situação se arrastou porque foi permitido a Israel transformar Gaza em um massivo experimento humano para a guerra e prolongar o cerco sem qualquer responsabilização séria ou uma resposta internacional significativa. Gaza está paralisada entre a máquina de guerra israelense, a desunião árabe, o apoio cego americano a Israel, a cumplicidade europeia, a inação da ONU e assim por diante”, afirma o jornalista palestino, Ramzy Baroud, que vive nos Estados Unidos.

Ex-editor do Middle East Eye e Al Jazeera online, Baroud cresceu em Gaza, onde viveu até os 20 anos. “Entre os anos de 1980 e 1990, viver em Gaza já era uma luta constante: o encontro diário com as forças armadas israelenses, que frequentemente terminam com violência; o sempre crescente ‘cemitério dos mártires’, adjacente à minha casa, e a falta de tudo, incluindo água e eletricidade”, lembrou Baroud, em entrevista por e-mail.

“Quando jovem, meu campo de refugiados era uma tapeçaria de sofrimento e desejo humano, mas também um incrível testamento da vontade humana, a insistência em sobreviver, apesar de todas as probabilidades. Várias vezes nos reuníamos com nossos amigos e vizinhos na sala de estar de nossa casa em decadência para recitar poesia, compartilhar uma refeição, falar de um futuro melhor. Gaza ainda é um lugar de esperança, poesia e fé”, conta.

Atualmente, a população de Gaza sobrevive com apenas 4h30 de energia elétrica por dia, com água contaminada e com os hospitais em situação de calamidade permanente. “As coisas ficaram muito mais difíceis desde então. A natureza da guerra israelense mudou, beirando o genocídio; a pobreza tornou-se ainda mais extrema, pois foi associada a um cerco perpétuo e a destrutivos ataques militares que mataram milhares de pessoas”, afirma o jornalista.

Para tentar garantir o mínimo de assistência e melhores condições de vida aos refugiados palestinos, a Assembleia Geral da ONU estabeleceu, em dezembro de 1949, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que presta serviços de educação, saúde, assistência social,  infraestrutura, microfinanças e atendimento de emergência em 58 campos de refugiados e outros locais do refúgio palestino: no Líbano, Síria, Jordânia, Gaza e Cisjordânia.

No entanto, em agosto de 2018, os Estados Unidos cessaram a ajuda financeira à UNRWA. O país era o maior doador individual da organização, financiando quase 30% de suas operações na região. De acordo com o Departamento de Estado americano, a decisão de cortar os recursos para a agência da ONU deve-se ao fracasso da instituição em reformá-la. “Os Estados Unidos já não dedicarão mais fundos para a operação irremediavelmente defeituosa”, comunicou na época Heather Nauert, porta-voz do Departamento.

O governo de Trump já havia feito cortes no começo do ano justificando  que assumia um peso desproporcional na ajuda humanitária. Atualmente, a UNRWA apoia cerca de cinco milhões de palestinos. Segundo o escritor Mohammad Arafat, a agência continua fazendo reuniões internacionais para arrecadar doações. “Há quatro anos, a organização vem lidando com um agravamento do problema financeiro”, afirma.

Para Arafat, a decisão pode ter consequências graves para a região: “Se a UNRWA não chegar a uma solução adequada para corrigir o seu déficit, mais de cinco milhões de refugiados palestinos serão sentenciados à fome e ao sofrimento. Além disso, a educação de centenas de milhares de estudantes da UNRWA será afetada, e milhares de professores da UNRWA serão demitidos de suas posições”.

Baroud vai além: “O objetivo de Israel na guerra contra a UNRWA é minar a organização que fornece aos palestinos o status de refugiados. Sem a representação da UNRWA, Israel espera, de alguma forma, cancelar o direito de retorno dos refugiados palestinos às suas casas na histórica Palestina”, declara o jornalista.

Arafat acredita que, internacionalmente, a maior parte dos países árabes e os EUA querem uma solução entre Israel e Palestina que funcione para os dois povos. “Ainda assim, palestinos e israelenses têm várias complicações em relação a isso, principalmente agora que Israel reconheceu a si mesmo como um Estado Judeu”,  observa.

Em 2007, após as eleições parlamentares da Palestina, o grupo Hamas assumiu o poder de Gaza. Com isso, situação piorou, uma vez que o grupo, considerado terrorista pelas lideranças de Israel, União Europeia e EUA, defende a extinção do Estado de Israel. Para Hasan, o Hamas tem um importante papel como força contra o ataque israelense. “Eu sou contrário à política deles. Agora, como movimento de libertação nacional, são meus heróis. As divergências ideológicas nós, como palestinos, resolvemos com eles. Em primeiro lugar está o fim da ocupação”.

“Enquanto Israel aperfeiçoou guerras desproporcionais contra os palestinos, os palestinos também aperfeiçoaram uma incrível capacidade de resistir à pressão e subsistir sob as mais severas circunstâncias. Essa resistência é conhecida pelos palestinos como ‘sumud’. Parece que quanto mais efetivos os seres humanos se tornam na habilidade de trazer a miséria e destruição, mais o espírito humano fica determinado a sobreviver. Gaza é um testemunho de tudo isso: a desonra e a beleza da raça humana”, conclui Baroud.

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